domingo, 20 de outubro de 2013

Por uma crítica pós-moderna?

Em tempos de muitos “pós” - pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-estruturalismo, etc. - as ciências encontram-se em uma encruzilhada: de um lado, a tradição; de outro, a inovação; e por fim, a obscura era contemporânea, cheia de incertezas e escolhas. A história, teoria e crítica de arte não fogem à regra. Podem optar pelo primeiro caminho e repousar no conforto das leituras formalistas e convencionais; também podem continuar valendo-se do repertório modernista e das releituras que decretaram seu próprio fim; mas podem ainda fazer a última opção, difícil porque não deixa espaços para comodismos; escorregadia, porque faz pensar sobre a arte a partir de incertezas e conceitos não concluídos. O que me levou a pensar sobre este assunto foram as ideias debatidas no curso de Metodologia de Pesquisa em Artes Visuais – Abordagens Qualitativas, do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB) e também os conceitos a respeito de Cultura Visual que vêm sendo abordados por alguns estudiosos no Brasil, entre eles, o Prof. Dr. Belidson Dias, responsável por aquela disciplina. Muito do conhecimento produzido a respeito de Cultura Visual tem sido relacionado à Arte Educação. Apesar das controvérsias, alguns estudiosos propõem, inclusive, um deslocamento epistemológico entre os dois campos. Entretanto, encontrei vários pontos convergentes para uma reflexão sobre a crítica da arte. A sensação é de que tudo está interligado. Parto, primeiramente, da ideia de que as abordagens críticas das ciências sociais podem trazer uma série de ferramentas e estratégias a serem aplicadas em todas as formas de mediação de conhecimento entre arte e fruidor. Por exemplo, na pesquisa acadêmica, nas novas posturas pedagógicas (em todos os níveis de escolaridade), nas abordagens dos espaços expositivos, no exercício da história, teoria e crítica da arte, e por fim, na própria vida, isto é, na forma como enxergamos o mundo a partir de lentes sensíveis e críticas. Para definir Cultura Visual, é preciso trilhar o labirinto traçado por diversas teorias. O fio de Ariadne revela alguns marcos: a Escola de Frankfurt, as Teorias Críticas, os Estudos Culturais, a Arte Educação Contemporânea (a experiência do Disciplined-Based Arts Education, e de Ana Mae Barbosa no Brasil, por exemplo), as novas posturas em pesquisa qualitativa (como a teoria queer e a pesquisa-ação), até chegar à atualidade, com estudiosos em várias partes do mundo trazendo pontos de vista os mais variados para as questões da Cultura Visual. Aliás, cabe aqui destacar a riquíssima experiência do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, que produz a revista Visualidades (boa parte, acessível no site da instituição www.fav.ufg.br/culturavisual. Enfim, o que pretendo abordar como Cultura Visual aqui é um campo teórico que abre infinitas possibilidades a respeito da interpretação das artes visuais. Seria, assim, uma abordagem cultural que abarca principalmente o "imaginário visual do cotidiano", como propõem muitos desses estudiosos. Partindo de pesquisadores de campos diversos, como Educação, Filosofia, Antropologia, Artes, etc., surgem inúmeras concepções e abordagens a respeito do tema. Algumas características: a natureza transdisciplinar, a rejeição aos meios de opressão dissimulada, o deslocamento das Belas Artes para a visualização do cotidiano (lembrando que o objeto estético não perde seu poder, mas é acrescentado de outros poderes por meio da contextualização), a formação de consciências críticas. É importante lembrar que a Cultura Visual surge na esteira dos Estudos Culturais, herdando a enorme bagagem que esta disciplina legou ao entendimento epistemológico do termo Cultura. Surgidos no panorama do Pós-Guerra, os Estudos Culturais questionam a idéia de Cultura, tendo como principal consideração os domínios do popular, fazendo frente às tradições elitistas. A chamada “virada cultural”, que revolucionou os domínios do entendimento de cultura nunca antes vistos, dissipou as fronteiras entre as esferas ditas altas e baixas da cultura. Este novo momento mostrou que as manifestações culturais – sejam a música clássica, a pintura renascentista, imagens de TV e publicidade, gráficos, música de rock, história em quadrinhos, etc. – não devem ser consideradas apenas expressões de cultura em si, mas artifícios que produzem sentidos circundantes, formam identidades, estabelecem hierarquias, são eles mesmos territórios de estudos e locais de ação. É claro que a história, teoria e crítica da arte vêm lidando com estas questões há bastante tempo, seja por meio de revisões historiográficas que propõe reagrupamentos geopolíticos, cronológicos e estéticos; ou de atitudes mais pontuais, como as críticas a respeito das metodologias greenberguianas. Mas entre os pontos mais interessantes da Cultura Visual, para estabelecer um paralelismo com a interpretação da arte, está a ideia de multiculturalismo (ou transculturalismo), isto é, como as questões de etnia, gênero, sexualidade, raça, classe, etc., vêm sendo tratadas na contemporaneidade, seja pela cultura de mídia global ou pela arte; e como isto está relacionado com as forças dissimuladas de poder. De um lado, o rádio, a televisão, o cinema, a internet, os outdoors, nos dizendo o que devemos vestir, comer, aonde ir, enfim, quem devemos ser. De outro lado, artistas cujo projeto é exatamente combater esse estado de coisas. Entre as abordagens sobre o feminismo há exemplos vigorosos como resposta aos massacrantes códigos do que é ser mulher na sociedade tecnocapitalista (lembremos que as próprias feministas foram contestadas por seguirem o modelo “branca, classe média”). A francesa Loran, que modifica radicalmente o próprio corpo para criar uma personagem ambígua; as brasileiras Nazareth Pacheco, com seus vestidos de lâminas, e Marina Abramovic, com as inversões de cânones, como na imagem reproduzida aqui, Pietá com Elvira; as Guerrillas Girls com o humor ferino de suas mulheres-gorila. E ainda exemplos históricos, como Frida Kahlo, que não aceitava o rótulo de surrealista, pois queria apenas retratar sua dor e suas origens étnicas. E por que frisar as manifestações veladas de poder? Porque os poderosos sistemas de comunicação, que nos dizem binariamente o que é ser homem ou mulher, bem-sucedido ou fracassado, bom ou mal, utilizam-se de modelos de produção de massa manipuladores e dissimulados, utilizam-se do espetáculo para seduzir a platéia. A própria ideia de pluralidade cultural já foi apropriada por grandes corporações, por exemplo, a marca de cosméticos Dove com a campanha sobre a imagem da mulher real. Este exemplo mostra o quanto o tema é complexo. Há, inclusive, estudos famosos sobre esta ambigüidade, como a análise de Douglas Kellner sobre a cantora Madonna, que ao mesmo tempo em que é símbolo de protesto dos modelos de sexualidade, raça, gênero e religião, utiliza-se da moda para a construção e veiculação de sua imagem. Como analisa o crítico Fredric Jameson, ficaram no passado: "o expressionismo abstrato, o existencialismo na filosofia, as formas derradeiras da representação no romance, os filmes de auteurs, a poesia modernista, todos representantes do impulso final do alto modernismo". O que vem em seguida é empírico, caótico, heterogêneo, como Andy Warhol e a pop art, o fotorrealismo, a música de John Cage, o cinema experimental. Importante também lembrar a relação da arte contemporânea com a cidade, sua arquitetura, seus processos de exclusão. O grupo BijaRi, sediado em São Paulo, tem realizado criativas intervenções, como outdoors, carros e caçambas cobertos por plantas, cujo projeto é problematizar as relações ocultas de poder no cotidiano. Como olhar para um mundo colonizado por imagens dos mais variados níveis, inclusive, nesta pós-modernidade que olha exatamente para a paisagem degradada do brega e do kitsch, dos seriados de TV, da paraliteratura (ficção científica, mistério, romances de fantasia), e dos filmes B de Hollywood? Como considerar também a noção de pastiche, substituto estranho da paródia? Se entraram em xeque os códigos europeus, brancos e masculinos que até então regeram a história de nossa cultura, como considerar conceitos como a sociedade pós-industrial de Daniel Bell e a sociedade do espetáculo de Guy Debord? Como lidar com as novas noções de identidade (como descreve Stuart Hall a respeito do múltiplo sujeito pós-moderno) e de realidade? Acho que essas são apenas algumas das muitas perguntas que nós, os mediadores da arte, precisamos nos fazer todos os dias. Afinal, entre tantos novos conceitos, não podemos esquecer aqueles relacionados às novas práticas educacionais. Nós, mediadores, quando fora do espaço pedagógico tradicional, não agimos como pedagogos culturais? Somos especialistas neutros ou responsáveis por transmissão de conhecimentos legitimados? Afinal, o que constrói as desigualdades, que retórica as sustenta, o que fazer para transformar este cenário? A Cultura Visual talvez nos forneça alguns caminhos. Apropriar-se dos códigos estéticos, assim como dos códigos da cultura de massa, estão entre algumas estratégias. Como afirmou Foucault, o mundo não está mais dividido entre opressores e oprimidos. O artista, o espectador e os mediadores também podem apropriar-se da própria cultura dominante como recurso de força e inversão de significados. A beleza do paradoxo está aí.